Cinco anos após sua morte, o Tenente Coronel Al Simmons desperta daquilo que deveria ser seu “sono eterno” como uma criatura infernal conhecida pelo nome de Spawn. Sem lembranças sobre sua vida passada ou mesmo da missão que carrega nesta nova passagem pela Terra, Spawn vaga pela cidade de Nova York batendo em criminosos, testando seus poderes mágicos quase ilimitados, dormindo com mendigos e tendo flashbacks de coisas que aconteceram enquanto estava vivo.
Em alguns desses momentos, acaba descobrindo pistas sobre seu passado, inclusive o motivo que o levou a aceitar um acordo com o demônio Malebolgia para voltar a vida – sua esposa, Wanda Blake. Mas ao reencontrá-la, percebe que ela se casou de novo e tem uma filha com aquele que era seu melhor amigo.
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Agora, sem memória, esposa ou mesmo um objetivo, tendo que usar uma roupa incrivelmente badass, com correntes que não servem para muita coisa e uma capa que não segue as leis da física, mas ajuda a esconder a aparência carbonizada da sua pele, Spawn procura uma saída para esse pesadelo enquanto choraminga por becos escuros e enfrenta vilões gigantemente grotescos – dignos de uma boa revista de heróis dos anos 1990.
Spawn: Origens vol.1, de Todd McFarlane
A sinopse fanfarrona foi só para combinar com o tom dessa obra que, sem sombra de dúvidas, abraça a cafonice e se consolida como um dos projetos mais importantes, não só da história da Image Comics como da indústria de quadrinhos como um todo.
Hoje, vou focar na resenha do material em si e deixar para falar sobre a revista Spawn no futuro, pois Spawn: Origens vol.1 finalmente está entre nós e temos muita coisa para pontuar aqui – principalmente para aqueles que estão tendo o primeiro contato com o personagem e descobriram que o gibi tem lá uma qualidade meio duvidosa.
Antes de começarmos, vale a pena contextualizar algumas coisas importantes que você deve ter em mente quando embarcar nessa onda de nostalgia que acometeu os leitores brasileiros e foi abraçada pela Panini em sua programação de publicações mensais. Primeiramente, leve em consideração que Spawn é um personagem característico dos anos 1990. A primeira publicação aconteceu em 1992, na sua revista homônima que foi o segundo título a sair pela recém-fundada Image Comics.
A Image, por sua vez, já nasceu com uma proposta diferente de tudo o que o mercado tinha como padrão e esse viés obviamente ia estar presente em suas publicações que tinham como princípio manter os direitos autorais das criações com os seus respectivos criadores – fazendo seu lucro apenas de um pequeno percentual das vendas dos quadrinhos.
Formada por sete dos mais influentes artistas da época, descontentes com os acordos comerciais e pagamentos das gigantes para quem trabalhavam (Marvel e DC Comics), Todd McFarlane, Rob Liefeld, Jim Lee, Erik Larsen, Marc Silvestri e Jim Valentino abriram cada um o seu estúdio e publicaram as revistas com seus personagens originais (Whilce Portacio não assinou como sócio, no primeiro momento, e acabou ficando sem um estúdio). Youngblood foi a primeira revista concebida pela editora, no mês seguinte, Spawn debutou sua edição Nº 01, vendendo 1.7 milhão de unidades.
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Outro ponto importante para considerar é que Spawn é um personagem fruto da sua época, ou seja, seu estilo de traço, visual, poderes e tudo que constituem a atmosfera e tom das suas histórias, como ambientação, personagens secundários, linguagem, etc. foi feito para agradar ao público que lia quadrinhos nos anos 1990. Esse estilo conquistou os leitores anos antes com as revistas dos X-men, X-Force e Homem-Aranha, pelo próprio Todd McFarlane, que chegou a vender 2.5 milhões de cópias.
Então, a gente tem que entender que Spawn não foi (totalmente) um golpe de sorte. Existe uma qualidade ali. Isso significa que Spawn: Origens vol.1 é bom? Com toda certeza, não.
No começo do ano, a Panini anunciou que faria a republicação de Spawn no Brasil com duas revistas, a princípio. A publicação regular parte da edição 296, serve para atender aos leitores que já vinham acompanhando as histórias do personagem e que não têm interesse em reler tudo desde o começo. Já Spawn: Origens chega justamente para preencher essa lacuna e deve cobrir as 100 primeiras edições da revista, pelo menos.
Sendo assim, Spawn: Origens vol.1 reúne suas sete primeiras edições, escritas e desenhadas por Todd McFarlane, marcadas como uma das piores fases do personagem.
O que acontece é que o autor sempre teve um ótimo trabalho em sua arte. Basta ver como sua fase à frente do Homem-Aranha, dois anos antes, foi e é extremamente elogiada até hoje. Os desenhos não são um problema. Entretanto, seu texto nunca foi lá aquelas coisas e, mesmo tendo uma premissa interessante, seu argumento e narrativa pecam muito.
A ideia base de você ter um personagem voltando do inferno para enviar almas ao exército do Diabo é sensacional. Os recursos narrativos de amnésia, a descoberta dos poderes e até os mistérios sobre sua vida são tropos que, apesar de batidos, conseguem ser interessantes e podem resultar em boas tramas. Já a ambientação combina com tudo isso e consegue entregar um clima sombrio, mesmo que em vários momentos o texto siga por um caminho mais cômico. Até mesmo as referências que McFarlane usou para construir sua narrativa são boas; inspiradas por quadrinhos como Watchmen, Batman: O Cavaleiro das Trevas e O Monstro do Pântano, do Alan Moore.
Contudo, nada disso consegue salvar um argumento chato e arrastado que abusa de monólogos depressivos para levar uma história confusa a encontrar o seu rumo. E quando eu digo encontrar o rumo, é literalmente achar um caminho, pois existem vários momentos que você percebe como nem mesmo o autor tinha planos de como ia conduzir a trama. Spawn tem diversos poderes, mas nunca fica claro o que ele pode ou não fazer. Uma hora solta uma espécie de fogo pelas mãos, outra consegue se teleportar mesmo sem saber que podia fazer aquilo.
Engraçado que até o dilema do herói acaba sofrendo com isso. Em um determinado momento, Spawn descobre que seus poderes são enfraquecidos conforme ele os usa e, caso “gaste” tudo, vai morrer novamente. Essa situação até poderia ser um conflito ou dilema sobre poderes, isso se ele não pudesse usar outros meios para lutar, como ARMAS. Sério, gente. Não tem lógica o demônio nerfar o soldado que alimenta seu próprio exército, é como se uma empresa contratasse um funcionário e limitasse ou atrapalhasse a execução do serviço.
Mesmo os personagens secundários não têm muito aprofundamento. Os vilões são caricatos, riem e matam só pelo prazer de serem maus. A trama da sua esposa é até legal, mas acaba sendo mais uma muleta para os monólogos incansáveis de Al Simmons, fora a figura do Violador, que fica matando diversos criminosos da cidade sem motivo nenhum.
Tudo é raso e extremamente conveniente. Um fator tão negativo que fez McFarlane perceber que precisava contratar roteiristas para lhe ajudar – assim, futuramente vamos ter grandes nomes escrevendo o argumento enquanto ele faz a arte. Como havia muitos leitores que não sabiam disso, alguns acabaram se decepcionando com essa publicação, por esperar mais de um material que é amplamente mencionado pela comunidade.
Mas apesar de todos esses pontos fracos, existem sim motivos que tornam Spawn divertido. As referências a outras obras durante a história como os Youngbloods ou mesmo o anúncio do Savage Dragon em uma cena específica são um exemplo de como a Image integrava bem o seu universo e, mesmo sem grandes planos de negócio, já sabiam trabalhar com aquilo que atraia a atenção dos leitores e fazia mover as vendas das outras revistas que estavam sob seu guarda-chuva.
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Porém, é indiscutível que a arte do Todd McFarlane seja o ponto mais alto dessa fase inicial do projeto. Seu traço é tão característico quanto os personagens que ele cria – tanto que, existem inúmeras semelhanças entre o visual do Spawn e o Venom que fez enquanto trabalhava na Marvel. Todos são exageradamente fortes, grandes, com feições caricatas muito bem feitas e fazem jus às dezenas de splash pages que esse material tem.
E não confunda. Não é porque digo que as artes são incríveis que elas são perfeitas. O mesmo exagero que torna elas marcantes acaba por pesar a mão na quantidade de informações e cores em uma página. Fica ainda mais perceptível a bagunça visual quando os diversos balões de texto se misturam com a diagramação caótica e o choque de informações causa uma certa confusão que te impede de apreciar o conteúdo total.
Mas, olha. Mesmo assim, Spawn consegue ser muito divertido. Como disse outras vezes, é um retrato da sua época e de um momento muito peculiar da indústria das histórias em quadrinhos. Apela para a nostalgia dos quadrinhos de brucutus? Sem dúvidas! Entretanto, mostra como toda ideia bem lapidada pode gerar bons frutos.
Spawn: Origens vol.1 reúne as edições de 1 a 7 da revista regular do herói em 176 páginas, capa cartão, e foi lançado com o preço promocional de R$ 19,90, mas você já pode encontrar com um valor ainda mais em conta. Vale lembrar que esse valor passa para R$ 34,90 na segunda edição e R$ 44,90 a partir da terceira. Portanto, se programe certinho para não ficar buracos na coleção.
Além disso, é importante ter em mente que a Panini prometeu ao menos 15 volumes dessa série, completando as 100 primeiras edições. A continuidade vai depender muito do volume de vendas e interesse dos leitores neste e nos outros materiais da revista Spawn que vão ser publicados, como a série principal e os especiais do Violador e outros.
Ainda está indeciso se vale a compra? Uma dica que dou é tente ler o primeiro volume online. Você encontra fácil em português e aí decide se vai pegar ou não. O que importa é você curtir a leitura. Não entre na onda de começar uma coleção só pelo hype – ainda mais se for algo com uma qualidade tão questionável. Spawn é excelente naquilo que se propõe, mas claramente não é para todos.