Ainda em fevereiro a Amazon anunciou que estava encerrando mais uma das funcionalidades do Kindle. O recurso de baixar o arquivo de um e-book comprado na loja para transferi-lo via USB ao dispositivo não está mais disponível de maneira oficial. De agora em diante, a única forma de acessar o conteúdo é fazendo seu download diretamente no Kindle, através da conexão com a internet.

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A Amazon aproveitou para dizer que os arquivos que já estiverem em seu computador poderão ser transferidos normalmente. Porém, desde o dia 26/02 já não é mais possível baixar os e-books comprados na loja em AZW3 – formato que tinha uma certa fragilidade e facilitava a quebra do DRM (Gerenciamento de Direitos Digitais), que é um recurso de proteção de direitos autorais, e a prática de infringi-lo é ilegal.

De agora em diante, todos que tentam realizar o procedimento no site da empresa recebem uma notificação informando sobre a mudança. Inclusive, ainda é possível comprar o tom no discurso adotado na antiga mensagem, falando sobre o recurso como uma dica de uso do dispositivo, com a mais recente, com uma postura completamente diferente.

Amazon remove transferência de e-book para o Kindle via USB
Amazon remove transferência de e-book para o Kindle via USB

O que a princípio parece inofensivo, com a empresa descontinuando uma funcionalidade que muita gente nem sabia da existência, na verdade evidencia um enorme problema na forma em que produtos digitais estão sendo comercializados nos últimos anos. E, além de fazer com que os consumidores se questionem sobre a validade das suas compras, também fomenta a eterna discussão sobre a importância e necessidade da pirataria.

Neste caso específico, ao impedir que o consumidor baixe um livro digital pago, a empresa não está limitando apenas o compartilhamento de materiais entre pessoas (algo que consideram como pirataria e o que estão visando “combater” com essa ação) mas também tira qualquer possibilidade desse usuário manter uma cópia de segurança da sua aquisição – seja para transferir entre outros dispositivos que tenha, fazer a tradução para outras línguas ou mesmo guardar aquela cópia para usar onde, quando e como quiser – como são livros físicos.

Fora outras dezenas de situações que podem impedir o acesso ao conteúdo, pois, se em algum momento o usuário tiver algum problema na conexão WI-FI do Kindle, terá uma limitação significante nos recursos do dispositivo.

E como se já não houvesse motivos suficientes para permitir que o usuários acessem os arquivos da sua compra, existe um outro risco para os leitores que consegue ser ainda pior. Por diversas vezes, foram registradas modificações nos arquivos de livros digitais feitos pela própria Amazon.

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Em 2009, a empresa removeu cópias de 1984 e A Revolução dos Bichos, de George Orwell, sob a justificativa de que haviam sido publicados por engano. Já em 2023, outro autor que acabou entrando nessa lista foi Roald Dahl e alguns dos seus livros, incluindo o famoso A Fantástica Fábrica de Chocolate. Mas neste caso, o novo arquivo fazia mudanças diretas na linguagem do material, atualizando o texto e censurando palavras consideradas “impróprias” (via Techmundo). 

Em ambos os casos, a alteração ou remoção dos arquivos foi feita de maneira forçada, sem a opção de escolha do leitor, que acabou sendo surpreendido ao conectar seu Kindle à internet. O portal Slate fez uma matéria bem completa sobre esse tema e trouxe alguns exemplos onde a remoção de livros pela Amazon foi feita com o intuito de censurar denúncias contra figuras influentes. Vale muito a pena a leitura para entender os riscos que esses precedentes abrem para uma manipulação e controle de informações.

Também há registros da empresa removendo arquivos da loja por infringirem direitos autorais ou mesmo por encerramento de acordos com autores e editoras. Em todos esses casos, que tiveram “problemas” constatados pela empresa, os consumidores ficaram sem seus livros, mas acabaram recebendo o estorno da compra.

Entretanto, o problema não está totalmente atrelado ao custo dos produtos e da possibilidade de receber o dinheiro de volta caso aconteça algo que te impeça de acessá-lo. A questão se torna mais complexa quando você passa a analisar a relação do consumidor com os produtos digitais e a forma que as empresas encontraram de assegurar seu lucro sobre os direitos autorais da obra, independentemente de oferecer suporte ao serviço, posteriormente.

Compra de edição x compra de licença

Quando você compra um livro físico, um DVD ou mesmo jogo, você não recebe uma cartilha de como usar. Apesar das instruções sobre pirataria, nada te impede de emprestar para amigos, alugar ou revender. Você está comprando um produto e tem o poder de escolha do que quer fazer com ele.

Agora no âmbito digital, com essa mudança na política da empresa, quando você compra um ebook na loja, não pode fazer nada disso e nem mesmo manter uma cópia para uso próprio. Isso porque o que você está adquirindo ao fazer a compra não é uma edição do livro, mas sim uma licença de uso limitada, que pode ser encerrada a qualquer momento, por qualquer motivo e sem aviso prévio.

Você não tem direito à posse, apenas a permissão de uso. Um modelo de negócio que até pode tentar ser justificado como similar a serviços de streaming, pacotes de ferramentas online, ou mesmo o próprio Kindle Unlimited, onde o leitor paga para ter acesso aos livros do catálogo.

Contudo, são coisas totalmente diferentes, pois quando se paga uma assinatura para acessar um serviço, você tem acesso a uma lista de filmes, séries, livros, etc. e pode consumir o conteúdo quando quiser, enquanto estiver disponível naquele catálogo. Agora, quando se compra um livro digital, você está recebendo somente um único acesso àquele arquivo – sem um catálogo com mais opções. Sendo assim, esse modelo não pode ser equiparado a uma assinatura.

Mas o pior é que a Amazon não é a única empresa que vem fazendo isso. Em 2024 uma polêmica semelhante explodiu no mundo dos games após jogadores notarem que a Ubisoft estava removendo cópias do jogo The Crew das suas bibliotecas – mesmo que eles tivessem comprado o jogo original.

Amazon remove transferência de e-book para o Kindle via USB
Ubisoft apaga The Crew da biblioteca de jogadores | Matéria IGN Brasil

Acontece que a maioria das plataformas de serviço digital tem em seus termos de uso uma cláusula que afirma que os consumidores não possuem direito a posse do produto, mas sim a uma licença que permite seu acesso enquanto aquela compra estiver disponível. Assim, caso aconteça algum empecilho e o produto suma da loja ou da sua biblioteca, elas se eximem da culpa – visto o posicionamento da Ubisoft frente aos processos abertos contra suas práticas.

Porém, uma nova mudança nas leis dos Estados Unidos pode ajudar a reduzir um pouco dessa “malandragem” de grandes corporações. O projeto de lei AB2426, assinado no fim de 2024, exige que as empresas informem de modo explícito como funciona a prática de aquisições em seu serviço; seja uma licença de uso, um empréstimo ou venda.

O problema é que, em outros países como o Brasil, isso ainda não é obrigatório e a página das Políticas da Amazon ainda não deixa essa informação totalmente clara, afirmando apenas que eles são responsáveis por licenciar o conteúdo e não vendê-lo. Um texto que fica bastante ambíguo para quem não sabe do contexto geral da venda de e-books.

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A atualização nas políticas da empresa foi feita mais para enquadrar todos os dispositivos na mesma regra de transferência de arquivos. Isso porque, a versão de outubro de 2024 do Kindle de 11ª geração já foi lançada com o Media Transfer Protocol (MTP) e matou definitivamente o USB Mass Storage.

Algumas pessoas estão buscando soluções alternativas para contornar a medida imposta pela empresa. Uma delas é fazer o Jailbreak do Kindle através de uma ferramenta chamada WinterBreak. Esse procedimento permite ter acesso a configurações de sistema sem restrições, possibilitando a instalação de outros sistemas de e-readers ou mesmo aplicativos como o Google Play Books, onde você ainda pode baixar os arquivos comprados na loja.

Entretanto, isso não é necessariamente uma solução para o problema. Além do mais, o procedimento fere as regras de uso do Kindle, fazendo com que o usuário perca a garantia e o suporte da Amazon, tanto para troca do produto quanto ao que diz respeito em receber atualizações.

Se comprar não é possuir, pirataria não é roubar

Como dito anteriormente, tirar um recurso importante do Kindle para tentar dificultar a pirataria é bastante complexo. Por mais que tenha quem defenda a empresa, seus lucros ou mesmo que afirme que tal ação serve para preservar o ganho dos autores, a verdade é que o tiro pode sair pela culatra e a medida acabar afastando ainda mais os leitores dos meios legais de aquisição

Atualmente, a Amazon detém uma parte muito grande do mercado de e-readers e podemos dizer que o Kindle é um monopólio. Então, ter uma empresa com tanta influência na maneira que os leitores consomem seus produtos é extremamente arriscado – principalmente quando a companhia toma algumas medidas questionáveis como o encerramento de suporte a diversos formatos de arquivos ou mesmo a descontinuação de recursos como o Flashcards, Kindle Vella e tantos outros que já estão em seu cemitério virtual.

Um ótimo exemplo de como lidar com a pirataria é o que o best-seller brasileiro Paulo Coelho defende em seu site até hoje, permitindo que tudo o que ele publicou seja pirateado e divulgado de maneira gratuita. Segundo o autor, isso incentiva a leitura e, consequentemente, a compra do livro. 

É óbvio que o impacto no bolso de um escritor rico é muito menor. Escritores amadores ou ainda com pouca visibilidade no mercado sofrem para conseguir lucrar com a venda das suas obras. Porém, é nesse momento que devemos pensar em outras alternativas para aumentar seu lucro. Se a empresa preza tanto pelo autor, por que não aumenta os royalties dos e-books comercializados em seu site para tentar reduzir os impactos da pirataria ou mesmo assegurar valores mais baixos na venda dos e-books? Também pode reaver as políticas de qualificação dos livros publicados, facilitando o processo para quem quiser publicar no Kindle Direct Publishing.

Mas, sejamos honestos. Isso não vai acontecer. O interesse deles é outro.

Se as novas medidas da Amazon vão funcionar ainda é uma incógnita, mas vale a pena ficar de olho em cada novidade que eles soltarem. É bastante improvável que voltem atrás na questão do download dos livros pagos; os leitores aceitam ou continuam a procurar alternativas paralelas para não ficar sem consumir entretenimento, cultura e educação. 

A verdade é que, no final, a gente sempre acaba voltando àquela velha discussão da internet: se comprar não é possuir, então pirataria não é roubar.