É muito comum ver obras que abordam o abuso de drogas seguirem um viés mais dramático, penoso ou até mesmo catastrófico, na vida dos personagens. Trazer um tema tão complexo exige uma certa sensibilidade que é difícil de alcançar e, por isso, muitos autores escolhem contar um drama ou trabalhar com reviravoltas que “joguem” essa responsabilidade de sentimento para quem está consumindo o conteúdo.
Em outro momento, posso me aprofundar na questão dos tropos e convenções de gênero usados neste tipo de narrativa, mas agora o foco é outro. Até porque, Simon Hanselmann, o autor de Mau Caminho, segue o caminho oposto do convencional e faz piada das coisas mais absurdas possíveis, criando situações que caminham naquela tênue linha que divide o certo do errado e faz você se questionar a todo momento se deveria mesmo estar rindo.
Mau Caminho, de Simon Hanselmann
Tudo começa numa introdução recapitular, onde conhecemos os três personagens principais da série original: Megg, Mogg e Owl, que haviam ido morar juntos para dividir o aluguel, nas últimas edições. Entretanto, após ser alvo de uma série de abusos psicológicos e sexuais, o Coruja decide ir embora de casa e deixa a responsabilidade das contas para os outros dois. Como se a situação já não fosse ruim, o problema piora quando Megg e Mogg têm seus auxílios do governo cortados e se veem obrigados a mudar o estilo de vida que estão acostumados para encarar a realidade do mundo adulto e arrumarem seus primeiros empregos.
Mas mudar hábitos de consumo excessivo de drogas e sexo não é tão fácil e, nessa jornada que entraram para tentar contornar algo tão simples e natural quanto assumir responsabilidades de adultos, eles descobrem a vida é muito mais do que imaginam, e o precipício do existencialismo fica cada vez maior quando você se recusa a encará-lo de uma vez.
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Se eu tivesse que descrever Mau Caminho com poucas palavras, provavelmente usaria tragicomédia existencialista para isso, pois as situações que são apresentadas conseguem gerar um surpreendente misto de sentimentos no leitor. Em vários momentos, você vai sentir empatia pelos personagens, ao mesmo tempo que ficará frustrado pelas decisões que estão tomando, porque sabe que aquilo vai provocar uma consequência autodestrutiva em suas vidas.
Mesmo que saiba que todos eles são tóxicos e estão puxando uns aos outros para baixo, você não consegue torcer contra. Pelo contrário, você espera que algo inesperado aconteça e mude suas escolhas para que não se envolvam em mais situações constrangedoras e perigosas.
E é justamente nesse ponto que o autor se sai muito bem, por saber como dosar o humor e o drama em uma história que, num contexto geral, aborda temas pesados e não tem situações positivas. Em um determinado arco, os personagens estão sem dinheiro para comprar drogas e, na fissura de consumirem qualquer coisa, decidem penhorar objetos pessoais. A única coisa que encontram em sua casa repleta de lixo é um presente que a mãe da Megg havia lhe dado quando era mais nova – algo de valor inestimável para ela, mas que seus “amigos” enxergam apenas como uma oportunidade de lucrar algo.
Esse arco é bastante deprimente, porque deixa claro que os personagens estão nessa situação pela comodidade. Nenhum deles está feliz, mas aceitam a condição simplesmente por não quererem dar o primeiro passo.
O legal é que Hanselmann não tenta justificar as atitudes dos personagens com um passado traumático e nem glamourizar o consumo excessivo de drogas, mesmo que mostre os efeitos “positivos” dos entorpecentes. Sempre que apresenta o estado de euforia de um personagem, temos a consequência daquilo em sua vida. Muito dessa sensibilidade deve-se ao fato do autor ter se inspirando em momentos da sua própria vida para criar a série Megg, Mogg e Owl e, por conta disso, consegue abordar pontos delicados com leveza, humor e, principalmente, verdade. E isso significa que não há passada de pano para nada.
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Explicar as publicações do Simon Hanselmann não é lá uma tarefa muito fácil. Para começar é importante deixar claro que ele não segue uma linha produção em seus livros ou mesmo publicação contínua, ou seja, existe uma cronologia, há eventos sequenciais – inclusive Mau Caminho termina com um gancho bastante curioso para uma próxima edição – mas ele não se importa com isso e nem trabalha com prazos. Então, você pode começar a ler os quadrinhos por qualquer livro que vai acabar entendendo, mas não fique tão ansioso para chegar o próximo.
Neste caso, a Veneta escolheu começar por Mau Caminho por ter sido a publicação mais recente de Hanselmann, na época. Atualmente, já temos o encadernado Zona de Crise lançado aqui no Brasil também.
Ao meu ver, a escolha da editora foi um acerto, pois Mau Caminho é uma excelente porta de entrada para quem não conhece os trabalhos do autor: é divertido, engraçado, triste e melancólico, tudo ao mesmo tempo. A arte tem bastante cara de underground, com desenhos minimalistas, em sua grande maioria, porém, há algumas páginas duplas lindíssimas que deixam claro todo potencial do autor que foge do padrão até em sua colorização, já que seus desenhos são coloridos com uma mistura de corantes alimentícios que dão um ar de aquarela à obra.
Mau Caminho é o tipo de livro que, muito provavelmente, vai te conquistar pela belíssima capa que tem e, ainda que você seja diferentão e não julgue um livro pela capa, é bem provável que fique curioso sobre a história que, visivelmente, não tem foco no público infantil. Aliás, por falar nisso, acredito que sua classificação indicativa para maiores de 18 anos não seja um total exagero – mesmo que uns 16 anos já fosse o suficiente, ainda dá para entender a escolha da editora Veneta.
De fato, o quadrinho é excelente, mas um conselho que deixo para vocês é tentar esperar alguma promoção. Eu mesmo comprei por cerca de R$65, na Amazon, mas atualmente, está custando R$85 – um preço que é meio salgado para uma publicação de 176 páginas. Mesmo assim, é um excelente quadrinho! Vai na fé que não vai se arrepender.
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