Quando a seca tomou conta da região, o pai de Dodola decidiu vender sua jovem filha a um escriba. Apesar de ter apenas seus oito ou nove anos, a pequena se tornou esposa do homem e passou a participar de suas rotinas de trabalho — aprendendo a ler, escrever e conhecer as mais diversas lendas e histórias do Corão, os Ahadith, As Mil e Uma Noites e outras grandes obras da cultura árabe.
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Entretanto, não demorou muito até que sua vida fosse revirada do avesso novamente, quando bandidos a sequestram com o intuito de vendê-la no mercado de escravos. É nesse momento que Dodola conhece Zam, um bebê que estava prestes a ser morto pelas mãos dos comerciantes. Antes que o pior acontecesse, ambos fugiram para o deserto e passaram a morar em um grande barco naufragado nas areias.
Com o passar dos anos, o laço entre os dois se fortaleceu, e as histórias que antes eram contadas apenas para distrair e ensinar algumas lições ao bebê acabam se tornando o ponto-chave que molda cada aspecto de suas vidas — seja na fé, nos questionamentos filosóficos e existenciais, em suas relações antropológicas e, até mesmo, nos aspectos mais íntimos da sua sexualidade.
Tudo isso sendo narrado entrelaçado a jornada dos dois personagens, bastante puros para aquela realidade, com as origens do islamismo, suas tradições e as polêmicas de uma cultura extremamente complexa.
Habibi, de Craig Thompson

Sem dúvida alguma, Habibi é uma obra de arte. Desde a escolha estética do projeto até a forma como a narrativa é desenrolada, tudo foi feito com o maior cuidado, delicadeza e atenção. Não é para menos. Craig Thompson levou sete anos, entre pesquisa e produção, para concluir o trabalho e publicá-lo originalmente em 2011 — chegando ao Brasil apenas em 2012, pela editora Quadrinhos na Cia.
Entretanto, como uma boa obra de arte tende a ser, o resultado não é necessariamente palatável. Isso não significa que seja ruim, de forma alguma. Mas podemos dizer que a graphic novel de Thompson — carregada de críticas e reflexões — é provocativa, amarga e, com toda certeza, não é uma leitura que vai agradar a todos. Na verdade, é até mais fácil encontrar críticas negativas sobre a obra. E tem um motivo para isso.
Habibi atém a maior parte da sua delicadeza à construção gráfica do quadrinho em preto e branco. Com isso, quero dizer que o traço escolhido para os desenhos foi milimetricamente planejado e produzido com extremo cuidado, prendendo-se à proposta inicial sem fugir dela em nenhum momento: inspirar-se na caligrafia e desenhos árabes. Dessa forma, cada página é um espetáculo à parte capaz de te fazer perder uns bons minutos só admirando determinada cena, ou mesmo a sutil troca entre estilos mais cartunescos e realistas.
Os elementos da cultura árabe que adornam os quadros também roubam a atenção toda vez que preenchem uma página e levam o leitor em uma viagem entre o presente e o passado com uma simples troca de cor nas páginas. É lindo ver como as letras fazem parte dos desenhos e constroem uma narrativa visual rica, que casa perfeitamente com os acontecimentos da história e, ainda assim, são capazes de embelezar o quadrinho, mesmo que seu texto discorra sobre temas pesados e desconfortantes.
E, como disse anteriormente, esse projeto do autor de Retalhos não busca criar um “conto de fadas” agradável. Os temas complexos e situações das mais horrendas possíveis são trabalhados de maneira explícita desde o começo do quadrinho — e esse é o principal motivo das suas avaliações baixas.
A questão aqui é que Habibi conta a história de dois escravos que vivem em um país fictício do Oriente Médio: um homem negro e uma mulher. Naquela sociedade, ambos são alvos de muito preconceito — por isso, vemos inúmeras situações de abusos, submissão e negligência.
Mas isso não acontece sem um aviso prévio. Desde quando os dois personagens se encontram, fogem para o deserto e passam a morar em um barco encalhado nas dunas de areia, no começo da história, é possível imaginar que a vida deles não será fácil, e todas aquelas violências que passaram vão voltar de alguma forma.
Não pense que a arte delicada suaviza essas situações. Pelo contrário. Muitas vezes o traço simples remete a pureza de Zam e Dodola, fazendo com que as coisas ganhem uma camada extra de desconforto e deixem o leitor ainda mais impactado.
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Há um determinado arco envolvendo o Zam que aborda sua relação com a sexualidade e as antinomias provocadas pela religião em pessoas que não se identificam com o próprio gênero, como no caso da comunidade religiosa real conhecida por Hijra que, em resumo, é constituída por pessoas transgênero que se submetem a arriscadas cirurgias por diferentes motivos, mas principalmente, por acreditarem que aquilo as aproxima da sua espiritualidade.
Contudo, apesar de mostrar como aquelas pessoas têm uma importância social gigantesca em rituais como casamentos ou nascimento de crianças, por exemplo, também escancara a marginalização que sofrem diariamente, com exposições a prostituição, consumo de drogas e abusos do mais diversos.
De fato, os temas são desconfortáveis. Mas isso é proposital! Faz parte da história que o autor quer contar e das críticas que quer fazer. Então, tratar isso como um ponto negativo não tem sentido nenhum. É deixar de entender a proposta da obra.
Admito que um dos meus maiores medos antes da leitura era de que, por ser americano, o autor usasse o cenário de um país do Oriente Médio para despejar todos os seus preconceitos envolvendo a cultura árabe. Felizmente não é o que temos aqui. Claro, são abordadas muitas problemáticas daquela sociedade, como sistemas de trabalho escravo, a venda aberta desses escravizados em mercados contemporâneos para exploração sexual e de força de trabalho — que são registradas até os dias de hoje — além da restrição dos direitos das mulheres em diversas frentes, mostrando, inclusive, a prática dos casamentos forçados e infantis (outro ponto real e “comum” em diversos países, inclusive no Brasil).
Entretanto, Craig Thompson tem a noção do seu “lugar de fala” e entende que precisa replicar a delicadeza do traço também no seu texto. Com isso, temos uma obra que aborda todos esses problemas, faz críticas bastante explícitas sobre aquela sociedade e a humanidade como um todo, como quando fala sobre poluição e falta de saneamento básico para pessoas mais pobres, mas não força absolutamente nada. Ele dá espaço para o leitor fazer suas próprias reflexões sobre aquele universo ao apresentar uma história que, apesar de cercada de problemáticas, cumpre perfeitamente bem seu objetivo principal: ser uma história de amor. E, nesse ponto, Habibi é incrível.
É óbvio que, mesmo com tantos elogios, a graphic novel não é perfeita e tem alguns deslizes bem perceptíveis. O principal deles envolve as anacronias (desvios de ordem cronológica) que o autor usa para saltar entre presente e passado, além de avançar no tempo, de acordo com a necessidade da narrativa.
Na grande maioria das vezes, funciona e o leitor não fica perdido quanto ao tempo em que os personagens estão e em que momento aconteceu cada coisa em suas vidas. O passado também é retratado em páginas com o fundo preto, que facilitam essa assimilação. Entretanto, há certos momentos que podem causar confusão sobre o período exato que aquele trecho está se passando — algo que fica ainda mais intensificado com os anacronismos que misturam objetos e construções do presente com coisas de um período mais antigo.
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Essa mistura é proposital e serve tanto para não associarmos aquele país a nenhum outro real, quanto para deixar claro que Habibi é uma fantasia, mesmo com sua história sendo tão próxima a realidade. Mesmo assim, às vezes você se perde no tempo em que a história está se passando e demora um pouquinho para se encontrar.
Habibi é uma história de amor repleta de camadas, onde críticas sociais são plano de fundo para uma narrativa muito mais complexa, com uma baita aula de cultura e antropologia, mostrando que, mesmo em meio a dor, é possível florescer a beleza. Um quadrinho que deve agradar tanto quem está em busca de uma leitura mais sensível quanto aqueles que estão dispostos a enfrentar temas pesados e desconfortantes, ainda que num tom mais delicado.
A publicação nacional da editora Quadrinhos na CIA. tem o formato semelhante ao original americano, com capa cartão, 672 páginas e preço sugerido de R$ 199,90 — mas que, vira e mexe, aparece em promoção. Apesar de ser um excelente material para se ter na estante, eu aconselho a tentar pegá-lo com pelo menos uns 20% de desconto, já que sempre acaba aparecendo em listas promocionais, como da própria Amazon.